Somos todos viciados? Dos celulares à comida, especialista explica como superar as armadilhas diárias - FRONT SAÚDE

Somos todos viciados? Dos celulares à comida, especialista explica como superar as armadilhas diárias

Para alguns, são açúcares; para outros, narcóticos, séries de televisão ou mesmo trabalho. Segundo a psiquiatra Anna Lembke, a maior autoridade em Medicina do Vício na Universidade de Stanford, nos Estados Unidos, os potenciais vícios aos quais estamos expostos diariamente não são apenas inúmeros, mas também estão aumentando. Podemos todos nos tornar viciados em um comportamento ou substância? A especialista diz que sim.

Em seu novo livro, “Geração de dopamina”, a especialista fala sobre a tão falada dopamina, os pequenos vícios que nos cercam no dia a dia e a relação conflituosa entre prazer e felicidade. Seu ponto de vista abrange não apenas suas experiências dentro da prática clínica, mas também sua visão de mundo sobre o ambiente em que vivemos e os desafios que enfrentamos todos os dias.

— Vivemos em um mundo viciado. Não conheço ninguém que não esteja lutando contra o consumo compulsivo: se não é mídia visual, é smartphone ou comida — diz.

Mas toda má notícia vem acompanhada de uma boa: Anna sugere que a recuperação de um vício é possível, ao mesmo tempo em que oferece soluções práticas para controlar o consumo obsessivo-compulsivo. Entre as principais chaves, uma se destaca: regular a dopamina para recuperar o bem-estar, que se traduz em “menos prazer, mais felicidade”. “A ciência nos ensina que todo prazer tem um preço e que a dor que se segue é mais duradoura e mais intensa do que o prazer que lhe deu origem”, escreve ela em seu novo livro, publicado na revista científica do Massachusetts Institute of Technology. (MIT), que o descreveu como “o trabalho médico mais importante da década”.

Por que o título do livro é “Geração de dopamina”?

— Queria mostrar que não é um problema individual, mas coletivo. Entramos em um momento inédito na História, em que todos estamos vulneráveis ​​ao problema da dependência. Não é que haja um problema de dopamina no meu cérebro ou no seu, há um problema de dopamina no mundo.

Em poucas palavras, o que é dopamina?

— É uma substância química produzida em nosso cérebro, um neurotransmissor. Isso significa que ela atua como uma ponte entre os neurônios, permitindo encontrar a harmonia desses impulsos elétricos. Quando fazemos algo que nos dá prazer, isso libera dopamina em nosso caminho de recompensa, e é por isso que nos sentimos bem. A dopamina é o neurotransmissor que nos faz dizer: “Isso é algo que eu deveria fazer com mais frequência.” É fundamental para a experiência de prazer, recompensa e motivação. Qual é o critério para saber o quão potencialmente viciante é algo? Quanto mais dopamina ele libera, mais poderoso ele é.

Você diz em seu livro que hoje é mais fácil cair no vício. Por quê?

— Porque agora vivemos em um mundo viciado, onde quase todas as substâncias e comportamentos se tornaram mais viciantes do que antes. Hoje temos novas versões de todas as drogas e mais variedade, por exemplo, de videogames, de redes sociais. Além disso, substâncias e comportamentos potencialmente viciantes estão mais acessíveis do que nunca. Se você mora em um bairro onde drogas são vendidas em todas as esquinas, é mais provável que você experimente drogas e fique viciado. Vivemos em um mundo onde temos acesso 24 horas por dia, 7 dias por semana, à dopamina digital por meio de nossos dispositivos eletrônicos e, como resultado, somos todos muito vulneráveis ​​ao consumo compulsivo de mídia social. A acessibilidade é um dos maiores fatores de risco para o vício.

Qual é o vício que mais chama a atenção, hoje, no consultório?

— Acredito que estamos entrando em uma nova era de vícios comportamentais. Hoje, os vícios têm mais a ver com as coisas que fazemos do que com as coisas que colocamos em nossos corpos. Na prática clínica, vemos cada vez mais casos de pessoas viciadas em pornografia, masturbação compulsiva, videogames ou em diferentes situações que envolvam dinheiro online, como compras compulsivas ou jogos. Acho que a pornografia é a mais perigosa, porque em nossa sociedade há tanta vergonha internalizada em torno desses comportamentos que as pessoas não pedem ajuda, não admitem.

Por que os telefones celulares e as redes sociais são tão viciantes?

— As redes sociais podem ser uma ótima maneira de se conectar com outros seres humanos. Somos seres sociais. Mas o problema é que, com as redes, as comunicações se tornaram muito poderosas e, somado a isso, não precisamos mais nos deslocar para nos conectar com outras pessoas, que também parecem muito bonitas. Talvez sejam mesmo, mas as redes têm todos esses filtros e iluminações que deixam as pessoas lindas. Combinamos com uma tela de luz, storytelling, curtidas, e depois transformamos em uma droga muito poderosa. É imediatamente acessível. Por exemplo, o Tik Tok, ao contrário da cocaína, nunca acaba, é infinito. E a quantidade importa, porque quanto mais expomos nosso cérebro a uma determinada droga, mais temos que continuar usando para nos sentirmos bem.

Será que, por outro lado, nosso vício em dispositivos digitais está relacionado à nossa incapacidade de ficarmos entediados?

— Sim, realmente perdemos a capacidade de estar em um estado de lazer sem estimulação externa constante. Estamos sempre neste modo reativo, o que significa que estamos constantemente tendo uma resposta ao estresse. Permitir que o nosso cérebro se acalme e descanse é muito importante para a saúde dele e para nos sentirmos calmos, com uma sensação de estabilidade e serenidade. Acho que realmente precisamos nos permitir ficar quietos, ficar entediados e deixar que pensamentos e sentimentos surjam. Alguns pensamentos podem nos assustar, como “o que é a vida?”, mas vale à pena tê-los. E acho que, como indivíduos e como cultura, estamos constantemente evitando-os. Estamos distraídos de nós mesmos, de nossas vidas.

Como e quando as pessoas cruzam a linha entre o uso recreativo e o uso prejudicial?

— Às vezes é fácil determinar e outras vezes não. Não há nenhum exame cerebral ou de sangue que possa diagnosticar o vício. Vício é o uso compulsivo e contínuo de uma substância ou um comportamento que prejudica a nós mesmos ou aos outros. Para diferenciar uma paixão ou hobby de um vício, é preciso observar se causa prejuízo ao indivíduo ou à sociedade. Se causa, é vício.

No caso do celular, por exemplo, existe alguma chave para a pessoa perceber se o seu consumo é prejudicial?

— Uma chave simples é ver se você está mentindo sobre seu consumo. É uma pista simples: não ser honesto consigo mesmo ou com os outros sobre o que você faz online ou com que frequência você o faz. Ou, por exemplo, é bom se perguntar se você se sentiria incomodado em dar seu celular para outra pessoa, e deixá-la olhar para o seu histórico, o que você estava fazendo ali. Se você se sentisse, e tenho certeza de que muitos de nós sentiríamos, acho que é um bom sinal de que o que você está fazendo e que o deixa envergonhado pode ser um vício.

Você fala no livro sobre a tolerância que os viciados desenvolvem em relação a certas substâncias: a necessidade de consumir cada vez mais para se sentir satisfeito. Isso também acontece com “drogas digitais”?

— Sim. Podemos começar a usar uma rede social de forma positiva, mas depois de um tempo você precisa de mais links ou mais vídeos ou versões mais curtas desses vídeos. Além disso, os algoritmos aprendem o que gostávamos antes e nos enviam o tempo todo, o que estimula esse ciclo compulsivo e repetitivo. O problema é que a dopamina foi realmente desenvolvida para um mundo de escassez e perigo iminente, e não para um mundo como o de hoje, em que tanto temos acesso a drogas e comportamentos que nos dão prazer. Em outras palavras, agora estamos expondo nossos cérebros a doses muito altas de dopamina para as quais eles não estão preparados. E, como resultado, nossos cérebros estão tentando se ajustar a isso regulando negativamente nossa própria produção e transmissão de dopamina. Uma das forças motrizes de todos os organismos, incluindo os humanos, é tentar restaurar a homeostase, um nível de equilíbrio. Mas a produção de dopamina não desce para níveis básicos, e sim para níveis abaixo da base, entrando em um déficit. E isso basicamente cria um cérebro viciado. Agora a pessoa precisa de mais daquela droga não só para se sentir bem, mas também para parar de se sentir mal.

Em seu livro você menciona que o vício em substâncias nos torna incapazes de desfrutar das pequenas satisfações da vida. Isso também ocorre no caso de vícios cibernéticos?

— Sim, ocorre em todos os tipos de vícios. Pessoas viciadas em redes sociais, videogames ou pornografia geralmente chegam ao consultório muito deprimidas. Muitas vezes nem buscam ajuda para controlar o consumo, mas sim tratam da depressão e posteriormente identificamos que estão usando as redes sociais ou outros tipos de mídia digital de forma compulsiva. Nesses casos, o que fazemos primeiro, em vez de prescrever antidepressivos e psicoterapia, é pedir que se abstenham do consumo que está gerando o vício por um período de tempo, o suficiente para que as vias de recompensa da dopamina sejam reiniciadas.

Mas mais cedo ou mais tarde eles terão que usar o celular novamente.Como você trata vícios desse tipo, nos quais a abstinência total não é possível?

— Quando falamos de drogas digitais, como quando falamos de alimentação, devemos entender que elas fazem parte de nossas vidas. Não podemos parar de comer, assim como muitos de nós não podemos parar de usar as mídias digitais porque elas fazem parte do nosso trabalho. Então o que temos que fazer é identificar corretamente qual aspecto da mídia digital nos prejudica, qual é o aplicativo que usamos compulsivamente. E depois, tente remover apenas isso. Claro que preciso usar meu celular para trabalhar, mas talvez não precise estar no Tik Tok. Posso então me comprometer a excluir o aplicativo e abster-me de usá-lo por um período suficiente para obter essa redefinição. Nesse caso, o uso de outros aplicativos também deve ser restringido, como não assistir a vídeos curtos do YouTube para substituir os do Tik Tok ou Snapchat. Você tem que se abster mesmo, reconhecer que são drogas e que é escravizado por esses aplicativos. E é bom fazê-lo em comunidade, para não se sentir sozinho. Também é bom encontrar atividades saudáveis ​​para substituir as não saudáveis.

Você trabalha em Stanford, no Vale do Silício, onde, imagino, devem ser observados muitos casos de vício em trabalho. Como essa psicopatologia é reconhecida e tratada?

— O vício do trabalho é difícil de reconhecer, porque a nossa sociedade o recompensa muito e os nossos heróis do mundo de hoje são pessoas que trabalham constantemente: são ricos, famosos e premiados. Mas a forma de distinguir se uma pessoa é “workaholic” ou simplesmente alguém que está tentando trabalhar bem, é analisar seu controle, compulsão e consequências. O tipo de consequências que o vício do trabalho traz são pessoas que, por priorizarem o trabalho, não possuem relações pessoais estáveis ​​ou positivas. Ou pessoas que, pelo mesmo motivo, não cuidam de sua saúde pessoal. Mentir, trapacear, roubar e fazer outras coisas que estão fora de seus valores também são indicadores de vício.

Você acha que há mais vício em trabalhar agora do que no passado?

— Absolutamente. Existe agora uma dicotomia interessante. Em empregos de alto nível, acessados ​​por pessoas altamente qualificadas, as pessoas estão trabalhando mais do que nunca. E muitos se tornaram viciados. Graças à tecnologia, não há ponto final do trabalho quando eles voltam para casa. Eles têm incentivos como aumento de salário, promoções de emprego, prestígio, prêmios. Mas, por outro lado, em empregos mal remunerados, trabalhos mecanizados, essas pessoas estão trabalhando menos do que nunca. Vemos nos Estados Unidos muitas pessoas que trabalham entre seis e quatro horas por dia. E as porcentagens de jovens que nem estão entrando no mundo do trabalho estão crescendo. O que essas pessoas estão fazendo agora que têm muito mais tempo de lazer? Os dados sugerem que muitos estão jogando videogames.

Por que existe essa dicotomia?

— No caso dos empregos de alta renda, transformamos o trabalho em uma droga. Então, muitas pessoas estão ficando viciadas em trabalho. No caso do trabalho de baixa renda, o que o trabalhador tem é apenas estresse. Então, as pessoas descansam de seus dias de trabalho com drogas. Depois de seis horas, eles dizem: “Vou voltar para casa para beber”. Ou “Vou chegar em casa para comer”. Ou “Vou chegar em casa para assistir Netflix. E aí está a dicotomia: ou saímos do trabalho para ficar chapados ou transformamos o trabalho em droga.

Você também fala em seu livro sobre boas notícias relacionadas ao problema dos vícios.

— As pessoas podem ter recuperações maravilhosas de vícios, bem-estar que pode durar a vida toda. As pessoas recuperadas começam a ter uma vida muito mais plena. Você pode ver pessoas em recuperação de dependência grave de drogas ou álcool que têm grande sabedoria para compartilhar. É sabedoria psicoespiritual, bem como sabedoria prática sobre como manter a abstinência ou moderação. Acredito que podemos viver vidas muito melhores se ficarmos atentos ao problema do vício e ao mundo em que vivemos, mantendo a intenção de não sermos interceptados por esses comportamentos e substâncias viciantes que nos cercam.

Você escreve: “Menos prazer, mais felicidade”. Como isso funciona?

— A neurociência nos mostra que a busca pelo prazer pelo simples fato de sentir prazer torna as pessoas miseráveis. E para entender isso é preciso entender o equilíbrio entre prazer e dor que existe em nosso cérebro. E isso abre a discussão: se a busca pelo prazer não é felicidade, então o que é? O que abre outra discussão, a da eudaimonia, essa antiga definição de felicidade, que aponta mais para “sabedoria e serenidade” do que para o prazer. Nossa cultura e nossa economia nos dirão que alcançaremos mais felicidade ganhando mais dinheiro, sendo mais famosos e consumindo mais bens de luxo, mas qualquer um que tenha muito dinheiro e muita fama e tenha consumido muitos bens de luxo nos dirão que este não é o caminho a seguir.

Você fala muito sobre narcóticos em seu livro. Nas novas gerações, difunde-se a ideia de que a maconha é menos prejudicial que a nicotina. Isto é certo?

— Absolutamente não é verdade. A cannabis, especialmente nas formas potentes e modernas em que é consumida hoje, tornou-se uma droga altamente viciante e perigosa. É uma droga psicotomimética. Isso significa que pode tornar as pessoas psicóticas, fazendo com que não distingam entre o que é real e o que não é, tornando-as altamente paranóicas ou levando-as a fazer coisas prejudiciais a si mesmas ou aos outros. Embora as pessoas geralmente não experimentem muita abstinência física, há uma abstinência mental ou psicopática muito forte: as pessoas que param de usar cannabis após um período de tempo experimentam tolerância. Eles terão desejos, eles vão querer fazer isso de novo. Duas gerações atrás, as pessoas que usavam maconha usavam-a de baixa potência, de forma mais recreativa com seus amigos. Agora, o que vemos é muito mais pessoas usando altas doses de maconha o dia todo, desde a hora em que acordam todas as manhãs até a hora de dormir. A maconha é uma droga potencialmente prejudicial.

Em seu livro você fala sobre uma economia de dopamina. Você poderia resumir esse conceito?

— É uma economia límbica. Embora o capitalismo tenha sido um sistema muito bem-sucedido para os seres humanos em parte, ele definitivamente tem um lado sombrio: seu desejo de nos tornar viciados. A indústria alimentícia é um ótimo exemplo. Nosso sistema de saúde foi afetado pela adição de mais gorduras e alto teor de açúcar. Não conheço ninguém que não esteja lutando contra o consumo compulsivo: se não é a mídia visual, é o smartphone ou a comida. Realmente reconhecer isso e tentar nos isolar um pouco de tudo isso nos ajuda a manter a dopamina equilibrada.

Fonte: O Globo