A crise que atinge os planos de saúde entrou em uma fase mais aguda e já se reflete nos hospitais, que começam a relatar preocupação com atrasos de pagamento e riscos sobre todo o sistema suplementar.
Levantamento realizado pela ANAHP (Associação Nacional de Hospitais Privados) na semana passada com 48 instituições apontou valores a receber em torno de R$ 2,3 bilhões.
São recursos devidos por atendimentos prestados entre janeiro e julho a pacientes em emergência ou em procedimentos autorizados pelas operadoras, mas os hospitais estão com dificuldade de efetuar a cobrança por obstáculos criados pelas próprias operadoras, segundo a Anahp.
Antônio Britto, diretor-executivo da entidade, afirma que o volume representa 16% do faturamento das instituições no período.
A estimativa é que os números sejam muito maiores se consideradas as mais de 120 instituições associadas à Anahp, que reúne nomes como Hcor, Albert Einstein, Oswaldo Cruz, Nove de Julho, Sírio-Libanês e Copa D’Or e tem quase 25% de participação em despesas assistenciais na saúde suplementar.
“Estamos diante de uma crise que não é só de um segmento do setor de saúde. É do sistema. E essa crise não vai se resolver com um segmento tentando ajustar seus problemas às custas do outro. Precisamos de um grande diálogo setorial com a ANS [Agência Nacional de Saúde Suplementar]”, afirma Britto.
O diretor da Anahp sugere que seja feita uma negociação de prazos e entendimentos comerciais para evitar burocracias que dificultam o andamento das cobranças pelos serviços prestados. Segundo ele, um dos obstáculos impostos por operadoras é a restrição de datas para a apresentação das contas.
Além do atraso no processo de faturamento, a entidade relata outro problema. Mesmo depois que os hospitais conseguem apresentar as faturas às operadoras, elas podem glosar as contas apresentadas.
A glosa é uma prática comum no setor e ocorre quando as operadoras fazem algum questionamento ou pedem mais detalhes sobre as cobranças.
Conforme os dados dos hospitais da Anahp, a parcela de faturas glosadas costuma girar em torno de 3,5% da receita bruta, mas neste ano subiu para 9%, chegando a R$ 1,29 bilhão nas 48 instituições consultadas.
Estamos diante de uma crise que não é só de um segmento do setor de saúde. É do sistema. E essa crise não vai se resolver com um segmento tentando ajustar seus problemas às custas do outro
“Com isso, outra parte significativa do fluxo de caixa dos hospitais fica em poder das operadoras. Para liberar as glosas, a maioria das operadoras vem exigindo um desconto”, diz a Anahp.
De acordo com o levantamento, o prazo de recebimento das faturas subiu de 70 dias, em média, para cerca de 120 dias.
A preocupação é que os atrasos aos hospitais possam desencadear impactos em cascata no pagamento de serviços que já foram prestados aos pacientes com gastos de insumos, equipamentos e pessoal.
A crise dos planos de saúde, que fecharam 2022 com o pior resultado de duas décadas em um prejuízo operacional de R$ 11,5 bilhões em 2022, se agravou com o aumento da sinistralidade acentuado pela demanda represada na pandemia, quando a utilização caiu devido ao cancelamento de procedimentos eletivos. No primeiro semestre deste ano, o resultado operacional já ficou em R$ 4,3 bilhões negativos.
Especialistas no setor atribuem o cenário a fatores como inflação médica, flexibilização do rol de procedimentos com cobertura obrigatória dos planos e a chegada de medicamentos de alto custo.
“Não adianta culpar a pandemia. O que está acontecendo é muito mais profundo. Há um problema estrutural no sistema de saúde suplementar. Se não houver coragem para enfrentar, vai ter cada vez mais transferência de responsabilidade”, afirma Britto.
Outros elos da cadeia de saúde se queixam de problemas semelhantes.
Milva Pagano, diretora-executiva da Abramed, associação de medicina diagnóstica, diz que os laboratórios também estão sofrendo, tanto pelo aumento das glosas como por atrasos de pagamento e negociações desfavoráveis de reajuste nas tabelas de preços.
“As negociações, muitas vezes, colocam o laboratório em situação delicada, porque, em vez de receber reajuste, ele recebe uma proposta de redução de valor. E, dependendo da empresa, é obrigada a aceitar o valor mais baixo para não ser descredenciada [da rede das operadoras]”, diz Pagano.
Segundo Sergio Rocha, presidente da Abraidi, associação que reúne distribuidores e importadores de produtos como próteses e válvulas cardíacas, ainda há casos com atraso de até 18 meses na liberação da emissão de notas fiscais, mas o setor vem tentando negociar.
Não há dúvida de que temos uma crise. De fato, está faltando recurso para pagar as contas
Procurada pela Folha, a Abramge (Associação Brasileira de Planos de Saúde, que representa as maiores companhias do setor) diz ser inegável que se trata de uma crise sistêmica e afirma que o crescimento das glosas resulta de um aumento nos filtros para verificar se as cobranças estão totalmente adequadas.
A entidade, no entanto, ressalva que o volume declarado em atraso é proporcionalmente baixo diante do total de pagamentos efetuados para a rede hospitalar, que ultrapassou R$ 100 bilhões em 2022.
“Não há dúvida de que temos uma crise. De fato, está faltando recurso para pagar as contas”, diz Marcos Novais, superintendente da Abramge.
Ele afirma que as provisões estão crescentes e a expectativa é de um resultado negativo menos pior no fim deste ano, mas ainda insuficiente para “tirar o nariz da água”.
Outra entidade representante da saúde suplementar, a FenaSaúde não quis comentar o assunto.
Texto de Joana Cunha para a Folha de São Paulo
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