Uma vida que termina e permite que outra continue. Quando o assunto é doação e transplante de órgãos, tem muita história para contar. Nesta quarta-feira (27/9), que marca o Dia Nacional de Doação de Órgãos, é hora de falar sobre solidariedade e gratidão. Aos 70 anos de idade, o mineiro Geraldo Fernandes de Araujo, natural de Capelinha, no Vale do Jequitinhonha, recebeu um novo coração aos 35. Ele hoje é o transplantado de coração há mais tempo vivo no Brasil – os que passaram pela cirurgia antes já faleceram. Geraldo viveu 35 anos com o coração original e completa mais 35 com o órgão recebido.
À época do procedimento, realizado no Hospital Felício Rocho, em Belo Horizonte, o agricultor era o quinto paciente transplantado em Minas Gerais. A equipe do cirurgião vascular Carlos Figueroa, responsável pela cirurgia e falecido há pouco mais de um ano, também havia atendido a primeira mulher do Brasil a receber um coração novo. O clínico geral José Olinto Pimenta de Figueiredo, conterrâneo de Geraldo, foi quem cuidou dele e ajudou na viabilização do transplante. O coração foi doado a Geraldo por um rapaz de 23 anos, cuja família, à epoca, preferiu manter o anonimato. O agricultor esperou pouco mais de 60 dias pelo órgão, necessário devido a um quadro de miocardiopatia, doença adquirida ou hereditária do músculo cardíaco que dificulta o fornecimento de sangue do coração para o corpo e pode causar insuficiência cardíaca. No caso dele, aconteceu devido a doença de Chagas.
A cirurgia durou três horas e a recuperação foi rápida – Geraldo recebeu alta em 60 dias. Durante o procedimento, a equipe médica trabalhou ao som de música clássica, uma ideia para manter a calma, segundo os profissionais, que não esconderam a emoção com o sucesso do transplante. “É uma satisfação muito grande ter nas mãos um órgão de ser humano pulsando e colocá-lo em outra pessoa com necessidade de viver. E mais emocionante ainda é quando a gente vê esse coração batendo com grande vigor no lugar daquele já bastante fraco”, declarou então Carlos Figueroa à reportagem do Estado de Minas que, em agosto de 1988, narrou essa história. Com pouco tempo, Geraldo pôde voltar a se dedicar a sua fazenda. Logo também revelou o desejo de comer uma boa feijoada, daquelas que não saboreava desde quando seu estado de saúde se agravou. Ainda com dificludade para falar, após a cirurgia não demorou a se sentir uma nova pessoa – e nada de dores. “Quando cheguei aqui no hospital eu não estava conseguindo nem andar direito. Agora fico imaginando poder cuidar dos meus filhos, ver todos eles crescendo com saúde. Não dá para acreditar e o que desejo é que a família de quem fez essa caridade seja eternamente abençoada por Deus. Agora, acho que posso dar graças a Deus por ter conseguido esse coração novo”, disse, depois do transplante, ainda internado. De lá para cá, são 35 anos de gratidão. Com fé, Geraldo diz que não teve medo de que as coisas dessem errado – confiou e colocou sua vida nas mãos de Deus. Voltou para a lida na roça, e conta que gosta de tirar o leite da vaca, cuidar da plantação de café e andar a cavalo. Parou de trabalhar tanto só há pouco tempo. Pai de três filhos, avô de sete netos e à espera do primeiro bisneto, declara que nasceu de novo e adora ver a casa cheia. “Eu estava desenganado, os médicos diziam que não tinha jeito mais. Doar salva vidas. Meu novo coração permitiu ver minha família crescer.”
Quando Geraldo passou pelo transplante em 1988, o agora diretor de transplantes do Felício Rocho, Silvério Leonardo, estava concluindo os estudos no primeiro grau, e já tinha a intenção de ser médico. Conta que se orgulha em agora coordenar o serviço através do qual Geraldo foi operado. “Trabalhamos para quem hajam mais senhores Geraldos. É muito gratificante ver isso. Daí a importância da doação de órgãos.” ParceirosHá 45 anos, os irmãos Ângelo Campos, designer gráfico, e José Campos, contador aposentado, vivenciaram um transplante de rim intervivos – Ângelo, hoje com 66 anos, é o receptor, e o doador, José, tem 78 anos. Aos 20, Ângelo foi diagnosticado com nefrite aguda, inflamação que afeta a capacidade do rim de filtrar os resíduos tóxicos e o líquido em excesso. Há algum tempo convivia com uma fraqueza e estava anêmico. Quando descobriu a doença, seu estado de saúde já era delicado – os rins não funcionavam mais. Em um primeiro momento, o médico que lhe atendeu o direcionou para hospital em São Paulo, mas na capital paulista a fila de transplante passava de 200 pessoas. Entre idas e vindas, seguindo o tratamento com a realização de diálise peritoneal, tipo de interevenção mais dolorosa que a hemodiálise comum, em outra instituição de saúde na capital paulista, a indicação foi mesmo pela necessidade de um novo órgão – e quase já não mais havia tempo para esperar. Foi quando Ângelo pediu transferência para Belo Horizonte. Os últimos meses de 1977 foram de angústia para Ângelo e a família. A luz no fim do túnel foi quando procuraram o Hospital Felício Rocho. Os médicos Euler Lasmar e Eduardo Távora receberam Ângelo de braços abertos. Ele foi hospitalizado imediatamente. Dos 14 irmãos de Ângelo, exames mostraram a compatibilidade de quatro, e foi o primogênito, José, quem declarou o desejo de lhe dar um novo rim. A decisão partiu dele.
O procedimento finalmente aconteceu, em 11 de março de 1978. “Minha gratidão por ele não tem como medir. Foi ele quem quis ajudar. Uma vez lhe escrevi em um banner que um grande coração pode multiplicar vidas. Me permitiu viver mais tempo com seu rim”, diz. Para quem precisa de um órgão ou quem manifesta a vontade de ajudar, Ângelo tem uma mensagem importante. “Para quem precisa, tenha esperança e confie que vai dar certo. Nunca pense negativo. Para o doador, se tem a oportunidade de ajudar alguém que conhece em vida, faça isso. Terá o crédito de ter salvado uma vida”, diz Ângelo, que hoje é acompanhado pela nefrologista Sandra Simone Vilaça, criadora e integrante da Unidade de Transplantes do Hospital Felício Rocho. Para José, doar significa felicidade. “Você tem que doar com alegria. É meu irmão. Tirou meu rim, depois disso continuei trabalhando na fazenda, não tem problema doar. O segredo é salvar a vida dele. Precisava fazer com urgência. Quando ele recebeu meu rim, o tempo de vida depois do transplante era dito como sendo no máximo seis anos. Tem 45 anos. Ele é recorde no Brasil”, brinca.
Sandra Simone Vilaça começou o trabalho na instituição de saúde em 1992 e em 2001 a unidade de transplantes foi estabelecida. De lá para cá, são mais de 4 mil transplantes de rim realizados e, também a partir de 2001, cerca de 400 de pâncreas. A médica explica que os órgãos que podem ser transplantados com o doador em vida são os rins, parte do fígado e medula óssea. Já um doador falecido pode ajudar até 10 pessoas – podem ser retirados para um novo receptor os órgãos chamados sólidos (coração, pulmão, fígado, rim, pâncreas e intestino) e tecidos (córnea, pele, válvula cardíaca e medula). Ela fala sobre a importância de entender que, no Brasil, o Sistema Nacional de Transplantes (SNT) é um sistema bem estruturado e seguro – 96% dos transplantes no país são feitos via Sistema Único de Saúde (SUS). O indivíduo acometido por alguma condição de saúde passa a precisar da cirurgia quando há falência terminal de algum órgão, que não funciona mais, explica a especialista. “É quando o coração, o rim ou o fígado, por exemplo, param de cumprir suas funções, levando à insuficiência”, esclarece.
Um limitador é o que Sandra informa ser a taxa de recusa, quando a família do possível doador, diante da confirmação da morte encefálica, constatada segundo critérios médicos consistentes, não permite a doação – esse índice é de 45% em Minas Gerais e 47% a nível nacional. Quando acontece a morte encefálica, no estado cabe ao MG Transplantes abordar os familiares sobre a possibilidade. “Acontece quando a família não aceita a doação, não aceita a morte encefálica e não entende o processo”, alerta Sandra, lembrando que o Brasil realiza apenas 50% dos transplantes que precisa todos os anos. Em 2022, dos 40 mil procedimentos necessários, foram feitos 22 mil, informa a nefrologista. “Doar é dar vida e alegria para quem precisa de um órgão”.
Números
Em Minas Gerais, segundo o MG Transplantes, um levantamento de janeiro a agosto deste ano mostra que 6.404 pessoas estão à espera de um órgão no estado. Do total, 21 esperam um coração, 3.228 por córnea, 2.992 por rim, 112 por fígado, 45 por rim/pâncreas e seis por pâncreas. Até dezembro do ano passado, a lista de espera em Minas era de 32 pessoas aguardando um coração, 2.863, córnea, 87 por fígado, 10 por pâncreas, 2.861 por rim e 49 por rim/pâncreas, em um total de 5.902 pessoas na fila no estado. Importante considerar que uma mesma pessoa pode figurar na lista em 2022 e estar na mesma condição atualmente. Em relação ao número de transplantes, o levantamento mostra que, entre janeiro e agosto de 2023, 584 pacientes receberam uma nova córnea, 44, escleras, 195, médula óssea, 375 receberam rins de doadores falecidos, 105 foram transplantados com rins de doadores vivos, 50 passaram por transplante de coração, 5 de fígado/rim (como se chama a doação conjunta, no caso do paciente que precisa ao mesmo tempo de mais de um órgão), 115 de fígado, 11 de rim/pâncreas (também doação conjunta) e cinco de pâncreas. Comparando o número de pessoas na fila de espera com as doações feitas, constata-se que o cenário mais crítico é para quem precisa de um novo rim. A fila de espera por transplante de órgãos no Brasil chega hoje a 66.250 pessoas, apontam dados do Sistema Nacional de Transplantes (SNT), do Ministério da Saúde. O número é um dos maiores dos últimos 25 anos, e inclui pacientes que estão à espera de transplantes de rim (mais de 37 mil), córnea (quase 22 mil), fígado (mais de 2 mil), pâncreas/rim (405), coração (391), pulmão (quase 200). O país registrou 1,9 mil doadores efetivos de órgãos entre janeiro e junho de 2023, índice 16% superior ao contabilizado no mesmo período de 2022 e o maior dos últimos 10 anos. Foram quase 16 mil procedimentos realizados em 2023. Cirurgião cardiovascular e torácico do Hcor, o médico Paulo Pego Fernandes explica que a fila de espera por órgãos respeita a ordem cronológica, mas é feito um cruzamento com uma lista de prioridades. No caso de problemas cardíacos, como aconteceu recentemente com o apresentador Fausto Silva, pacientes internados, com suporte para o coração e outros órgãos são priorizados e podem tomar a dianteira da fila. A gravidade do caso, o tipo sanguíneo e o tamanho corporal (altura e peso) influenciam no tempo de espera pelo órgão. “Em casos menos graves, a espera por um transplante cardíaco pode ser de 12 a 18 meses, em média. Em casos mais graves, esse período pode ser reduzido para de dois a três meses”, esclarece o especialista. “Muitas vezes, enquanto aguarda o transplante cardíaco, o paciente tem uma piora importante, fazendo com que seja necessária a internação, geralmente, em Unidade de Terapia Intensiva (UTI), recebendo medicações que ajudam o sangue a circular no organismo”, destaca.
Fonte: Estado de Minas
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