“Tudo são redes. A humanidade foi desenvolvida para funcionar em rede. Uma ferramenta tecnológica separou o Homo sapiens da competição: o fogo. Mas, se ninguém soubesse iniciar e terminar o fogo de forma repetível e segura, nem entendesse para que e como usá-lo, isso teria acontecido? Sem informação circulando, o fogo teria sido tão estratégico? O fogo ilumina (espanta predadores), aquece ambientes (protege pessoas), cozinha (facilita a digestão) e tem um sem-número de usos. Para ele ser útil em escala, muita gente teve que aprender seus quês, porquês e comos, e à medida que mais gente aprendeu, mais gente foi capaz de mostrar aos outros a utilidade do fogo. Assim caminhou a humanidade: o fogo e sua rede de conhecimento foi responsável pela expansão humana. Outro ‘efeito em rede’ foi a codificação de texto. A prensa de Gutenberg criou a indústria e o mercado do texto, mas só por meio de redes, com livrarias, bibliotecas, autores e, acima de tudo, redes escolares, criou-se a essência de que era preciso saber ler para participar deste mundo. Quanto mais gente lê, mais livros, mais escritores, prensas, livrarias e redes de leitura temos. Com mais gente lendo, mais gente precisa aprender a ler. O livro assim, é outro exemplo de rede que fez a civilização chegar aos dias de hoje. Não somos capazes de viver fora das redes. Não de ‘redes sociais’, mas das redes digitais e figitais”, explica uma das melhores mentes científicas do país, o engenheiro Silvio Meira, professor da cesar.school e fundador do Porto Digital.
Existem países que não lutam contra tais evidências: simplesmente as usam para ir adiante com o próximo nível. Em janeiro de 2022, o Reino Unido passou a expandir o seu sistema de compartilhamento de imagens médicas para mais 500 instituições do país. O Sectra Image Exchange Portal ou IEP compartilha em torno de 47 milhões de imagens por semana, que inclui radiografias, ultrassons, tomografias computadorizadas, ressonâncias magnéticas, exames PET e outras imagens de diagnóstico. Armazenado em nuvem e operacional desde 2009, o IEP é considerado o maior sistema do gênero no mundo, representando 50% de todas as instituições ligadas ao NHS já o utilizam. Ele substitui o compartilhamento de imagens médicas usando mídia óptica, ou também faz transferência de pesados arquivos, ou mesmo a necessidade de imprimi-las em acetado, que leva 100 anos ou mais para se decompor na natureza, além das substâncias químicas necessárias para o tratamento da chapa. “Gerenciar efetivamente a jornada do paciente por meio de imagens teria sido quase impossível sem o IEP, que nos permite obter rapidamente as imagens dos provedores e disponibilizá-las aos nossos profissionais de saúde”, explica Susan de Four, administradora de sistemas do Chelsea and Westminster Hospital NHS Foundation Trust, que usa esse sistema há quase uma década. Mas, outras organizações passaram a usar a rede, incluindo provedores de telerradiologia, hospitais privados e organizações que se concentram em diagnósticos utilizando Inteligência Artificial (IA). Uma nova usuária é a Innersight Labs, plataforma de planejamento cirúrgico especializada na criação de modelos 3D para suporte aos cirurgiões do NHS. Por meio dela, é possível acessar imagens de tomografia computadorizada e ressonância magnética do IEP para criar modelos virtuais para a tomada de decisão cirúrgica. “Ainda não encontrei um hospital que não use o IEP, o que é uma ‘flecha’ importante em nossa ‘aljava, ajudando a nos conectar com pessoas que precisam de suas imagens de forma rápida e segura. Mesmo que um hospital não tenha trabalhado conosco antes, ou que ainda não tenha uma integração direta com nossa plataforma, temos no IEP uma forma segura de compartilhamento que ajuda as equipes de governança das informações em PACS”, explica o Dr. Eoin Hyde, cofundador do Innersight Labs.
Dessa mesma maneira, o IEP disponibiliza acesso online aos pacientes. O “IEP-Anyone” é definido como uma extensão da rede que permite com as pessoas de todo o país acessar seus arquivos de imagem, independentemente do lugar que se esteja. De fácil acesso, é realizado por meio de um login seguro (celular, tablet ou desktop), permitindo que os britânicos possam compartilhar suas imagens com médicos de qualquer parte do mundo. “Ajudamos centenas de pacientes nos meses pandêmicos, como, por exemplo, os que estão nas forças armadas britânicas em diferentes partes do mundo, ou um paciente viajando para o exterior para tratamento quimioterápico, e muitos outros casos de pessoas que precisam das imagens médicas para obter segundas opiniões, tratamento especializado, ou simplesmente porque querem vê-las”, explica Annie Pinfold, PACS Senior Consultant da Oxford University Hospitals NHS Foundation Trust. Desde que o GDPR (Regulamento Geral de Proteção de Dados) passou a vigorar no Reino Unido, os pacientes dizem se sentir mais seguros para autorizar o acesso das suas imagens médicas disponíveis no IEP. Com relação a prática de imagiológicos por meio de CDs, Tokens, PenDrive, ou mesmo impressos, já está sumindo: dois terços dos pacientes britânicos que solicitam suas imagens realizam por meio do IEP-Anyone. Os hospitais que usam a rede IEP estão economizam tempo e dinheiro: da solicitação a entrega de um CD de imagens, que leva em torno de 20 minutos do tempo da equipe, e quase US$ 12 em custo de produção e postagem. Via IEP, esse processo não passa de 5 minutos, além de custar centavos. O IEP Anyone é considerado decisivo para capacitação dos pacientes e apoiá-los na questão do autocuidado, mas também ajuda o sistema a reduzir a carga de trabalho do NHS. Na nuvem, a confidencialidade pode ser ainda melhor protegida e os pacientes têm mais controle para saber quem acessa seus dados. Na era dos NFTs (Token Não Fungível) uma imagem médica digitalizada pode ter valor venal e também ser comercializada milhares de vezes (um proeminente cirurgião francês tentou vender via NFT um raio-X tirado de seu ex-paciente, sobrevivente do ataque terrorista de novembro de 2015 na sala Bataclan, em Paris, por U$ 2.776)
Entretanto, o Cloud vai ser o “lar das informações médicas”, especialmente das imagens médicas que necessitam de espaço de armazenamento bem acima de outros dados digitais (EHRs, por exemplo). Um dos benefícios da computação em nuvem na saúde é sua arquitetura em cybersecurity. O uso indevido e criminoso das informações médicas cresce de maneira descomunal, sendo que as ameaças cibernéticas têm chances de serem, reduzidas (ou dificultadas) quando as imagens estão instaladas em formato de nuvem. Em julho do ano passado, a empresa de consultoria Cynergistek, com sede no Texas (EUA), publicou um relatório informando que “2/3 dos sistemas de saúde dos EUA estão despreparados para as ameaças cibernéticas já existentes ou aquelas que estão por vir”. Em janeiro de 2022, a Health Insurance Portability and Accountabililty Act (HIPAA) o estatuto federal normativo dos EUA para aplicações em saúde, revelou que em 2021 houve 686 violações de dados de saúde, quase chegando em 45 milhões de registros de saúde expostos ou roubados, considerando o segundo pior ano da história em termos de segurança de dados médicos. Foram 245 violações de 10 mil ou mais registros; 68 violações de 100 mil ou mais indivíduos; 25 violações que afetaram mais de meio milhão de indivíduos; e 10 violações de informações pessoais de saúde que atingiram mais de 1 milhão indivíduos (no início de janeiro de 2022, por exemplo, o South Florida Healthcare System explicou sobre uma violação de 1,4 milhão de registros médicos
Mesmo na nuvem, os arquivos não estão fora desses ataques, mas com muito menor periodicidade, dimensão e podem contar com inúmeras barreiras criptográficas de proteção. Isso é muito importante quando vários sistemas clínicos funcionam em rede e estão interfaceados. No caso da Sectra, responsável por desenvolver e operar o IEP britânico (o nome na verdade é uma mistura das palavras SECure e TRAnsmission), sua origem vem dos departamentos de defesa e segurança, em que os documentos governamentais sigilosos precisam ter defesas cibernéticas altamente qualificadas. A empresa expandiu para incluir dados médicos em 1990 e a partir disso, se tornou uma das principais fornecedoras de arquitetura para a gestão de imagens em saúde.
Já nos sistemas em rede, principalmente aqueles voltados à saúde, a ética (bioética) é uma questão central, principalmente porque as organizações comerciais ou públicas precisam cada vez mais produzir data-handling para que possam melhorar a maneira como trabalham e personalizam os serviços seja para os cidadãos ou consumidores. No Reino Unido, a “ethical attention” corre nas artérias das sociedades protetoras de dados médicos, pois, já são décadas de experiências positivas e negativas de mal uso dos dados.
Um estudo publicado em 2019 pelo Open Data Institute (ODI) e YouGov apontou que a maioria dos britânicos confia no NHS para usar seus dados de forma ética (59%) considerado o único tipo de Organização em que a maioria dos entrevistados soma ‘mais de 50% de confiança’ (governo central, 30%; governo local, 31%; bancos e empresas de construção, 42%; fornecedores de serviços públicos, 18%; família e amigos, 34%; e organizações de mídia social, 5%). Quanto mais a população sabe que suas imagens médicas podem ser acessadas por prestadores de serviço de todo o país, nível de vigilância nas operações do IEP se torna maior. Assim, quando o serviço completou dez anos de existência, a pesquisa do ODI mostrou que 44% dos britânicos acham que o NHS deve continuar como a “maior garantidora de que seus dados médicos sejam tratados de forma ética”. É incrível a confiança depositada no NHS, o que obriga o sistema a cada vez mais alocar inúmeras camadas de proteção digital ao IEP.
O negócio de ‘compartilhamento de imagens médicas (PACS)’, que inclui o acesso direto do paciente, cresceu de forma depressa devido a três eixos: (1) nuvem; (2) smartphones e (3) inteligência artificial. Um exemplo foi dado em fevereiro de 2022, quando a Butterfly Network, fabricante do primeiro ultrassom de corpo-inteiro-portátil do mundo, buscou aliança com a Ambra Health, do grupo Intelerad, desenvolvedora de pacotes de gerenciamento em nuvem de imagens médicas. O intuito do acordo foi “simplificar a interoperabilidade de dados de imagem à beira do leito”. A Butterfly Network aproveita o histórico da Ambra Health em reunir de modo simplificado informações de imagiologia (utilizada em oito dos dez principais hospitais dos EUA). Normalmente a gestão de imagens médicas hospitalares é uma babel. Um cipoal de sistemas PACS gerenciado por uma, duas ou até três aplicações gestoras, que normalmente só “fingem integração”. Um hospital adquire outro, e ambos adquirem um Lab de Diagnóstico por Imagem, sendo que todos fazem fusão e adquirem outro hospital. Após alguns meses, todos continuam a funcionar em silos independentes, com “gambiarras de código reutilizável”, emulando alguma integração sistêmica, mas com enorme desperdício de recursos e paciência de pacientes e médicos. Fusões como essa são, em geral, estimuladoras de fake-intoperability.
É claro que a fusão Butterfly & Ambra tem um norte extremamente interessante. O estudo “Use and impact of point-of-care ultrasonography in general practice: a prospective observational study”, realizado por pesquisadores dinamarqueses e publicado em 2020 no BMJ, mostrou que o uso de imagens à beira do leito (avaliação inicial no primeiro atendimento) que acabou resultando em uma mudança de diagnóstico de 49,4% dos pacientes, e 50,9% de alteração na ‘gestão de cuidado’ que estava sendo aplicada. O POCUS (ultrassonografia point-of-care) consiste em uma maior segurança diagnóstica (quando comparado as práticas corriqueiras, sem PACS) e também uma alteração no diagnóstico e manejo de 71,8% dos pacientes. Vários estudos vão na mesma direção, sendo que as modernas workstations de coleta de imagem (portáteis, inteligentes, em rede, em nuvem e online com os profissionais de saúde) vão “invadir o point-of-care”, seja pela praticidade, agilidade e assertividade diagnóstica, ou seja pelo custeio.
Uma parte das insuficiências do sistema público e privado de saúde do Brasil reside em sua alta fragmentação. A essência da solução do problema está na capacidade sistêmica de operarem em rede. Indicando que não basta os 100 maiores ou melhores provedores da Saúde Suplementar conhecerem o “fogo”, mas que precisam usá-lo em cadeia e dentro de um circuito interoperável. Alguns deles expõem “como seus serviços estão em rede”, embora desconheçam por completo o que seja uma operação matricial em rede. Mais de 80% das entidades de saúde privada no Brasil não possuem “interoperabilidade transversal em dados clínicos em tempo real”, o que significa que, boa parte de suas próprias unidades de atendimento (mesmo “CNPJ”) ainda funcionam com silos individuais de informação médica, considerando que maioria ainda manipula papel ou imagens em acetato.
Poucos players utilizam EHRS compartilham imagens médicas fora do ambiente da coleta, e não mais de 5% possuem alianças sólidas e estruturadas com redes públicas ou setoriais para realizar esse processo. Alguns laboratórios de análise diagnóstica são a exceção, embora os preços também sejam. É possível que nenhum hospital da cidade de São Paulo disponibilize hoje um link-senha de prontuário-digital a um indivíduo recém-saído da internação. Imagina levar para casa dúzias de acetatos, resumo de alta, prescrições e talvez um ‘CD-RaioX’ (acredite, alguns ainda fazem isso). Pode haver exceções, mas a grande maioria termina o “atendimento hospitalar” quando o paciente “põe o pé fora do hospital”. Se algumas semanas depois, o mesmo paciente for atendido por outra instituição e precisar de alguma imagem coletada durante seu período de internação, dificilmente ela será disponibilizada.
Mesmo que não divulgue os resultados com a frequência que deveria, o Sistema único de Saúde (SUS) caminha com muito mais empenho e esforço para estabelecer parâmetros de informção médica em rede. A Rede Nacional de Saúde (RNDS), que é um OpenHealth ainda a nascer, ganhou força com a Covid-19. O seu principal instrumento para a rede primária, o aplicativo Conecte SUS Cidadão recebeu em 2021 (1) mais de 33 milhões de resultados de testes-Covid-19 (de 153 diferentes laboratórios); (2) perto de 350 milhões de registros de vacinação; (3) mais de 26 milhões de autorizações para internação hospitalar; sem falar (4) nos milhões de “passaportes vacinais”. Mesmo com todos os problemas operacionais, o Conect SUS e a RNDS são ferramentas que operam em rede nacional e são sucessos se considerarmos que nasceram a menos de três anos. Possuem plano (“Estratégia de Saúde Digital para o Brasil – 2020 – 2028”), estratégia, alguma meta (“espera-se que o Programa Conecte SUS e a RNDS estejam conectados às 27 unidades federativas até 2023”) e até um projeto piloto (Alagoas).
Mesmo que seja cedo para comemorar, como acontece no Reino Unido (NHS), parece que o DATASUS assume de forma definitiva a liderança das ações que impõe regras de interoperabilidade na saúde nacional. O Projeto de Lei (PL) 3.814/2020, que obriga o SUS a criar uma plataforma digital para unificar informações dos pacientes (rede pública e suplementar), foi aprovado no senado e entrou em discussão em outubro do ano passado, na Comissão de Seguridade Social e Família, da Câmara dos Deputados. O Conecte SUS já está apto a ser acessado por mais de 15 mil Unidades Básicas de Saúde (UBS), faltando operacionalizar outras 27 mil. A plataforma digital Conect SUS Profissional, lançada em julho de 2021, que vai possibilitar que médicos acessem de qualquer lugar do país o histórico clínico dos pacientes, incluindo futuramente as suas imagens médicas (PACS). Temos um longo caminho a percorrer, mas o Datasus tem direção.
Podemos discordar do cronograma, dos pit-stops para acomodar interesses, da hierarquia de ações e do cronograma, porém, existe um rumo, o que é muito animador. Saúde neste século não existe fora das redes. A ‘moeda das redes sanitárias’ não é a ambição ou a ganância, mas a generosidade. Operar em rede não é apenas conectar pessoas com entidades, mas sim, conectar pessoas com pessoas, pessoas com ideias e pessoas com oportunidades. Yuval Nooah Harari, na sua obra “21 lessons for the 21st Century”, resume sobre o papel das redes de saúde em nossa vida: “Humanos e máquinas podem se fundir tão completamente que os humanos não serão capazes de sobreviver se forem desconectados da rede. Eles estarão conectados desde o útero, e se mais tarde na vida você optar por se desconectar, as agências de seguro podem se recusar a assegurá-lo, os empregadores podem se recusar a empregá-lo e os serviços de saúde podem se recusar a cuidar de você”.
Fonte: Saúde Business
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