Em pesquisa com 200 voluntários, amido resistente reduz enzimas e inflamações ligadas à doença hepática gordurosa não alcoólica
A doença hepática gordurosa, também conhecida como esteatose hepática, é caracterizada pelo acúmulo de gordura no interior das células do fígado. Segundo o Ministério da Saúde, há evidências de que síndromes metabólicas, como resistência à insulina, níveis elevados de colesterol e obesidade abdominal, estão ligados diretamente ao excesso dessas células gordurosas. Ainda não há um tratamento específico para a condição. Mas cientistas do Hospital Shanghai Sixth People’s, na China, desenvolvem um trabalho nesse sentido. Eles descobriram um suplemento de amido que consegue reduzir os triglicerídeos armazenados no fígado de humanos.
O estudo — publicado na revista Cell Metabolism — relata que, em estudos anteriores, observou-se que o consumo do amido resistente, uma fibra indigerível que fermenta no intestino grosso, tem efeito positivo no metabolismo de animais. Agora, a nova pesquisa indica que a ingestão diária do produto pode alterar a composição das bactérias intestinais e diminuir os triglicerídeos hepáticos e as enzimas hepáticas associadas a lesões e inflamações no fígado de pessoas com doença hepática gordurosa não alcoólica (DHGNA).
Conforme o artigo, a DHGNA acomete, aproximadamente, 30% da população mundial. Pode levar a complicações hepáticas graves e contribuir para outras condições, como diabetes tipo 2 e doenças cardiovasculares. Normalmente, especialistas recomendam mudanças nos hábitos alimentares e prática de exercícios físicos para atenuar a situação. “Achamos que seria muito significativo se pudéssemos encontrar uma abordagem eficaz. Talvez, através da identificação de novos alvos terapêuticos”, conta, em nota, Huating Li, coautora do artigo.
Liliana Mendes, hepatologista da Rede D’Or, em Brasília, explica que o quadro se estabelece quando o excesso de carboidratos ultrapassa a capacidade de armazenamento e utilização do corpo. “Eles são transformados em triglicerídeos e se acumulam nos tecidos, sendo o fígado um dos principais órgãos de depósito.” Segundo a médica, a abordagem proposta pela equipe chinesa, o amido resistente, pode ser encontrada em alimentos comuns. “Está presente em comidas não processadas, como grãos, batata crua, banana verde, ou mesmo naquelas que passaram por modificações, como a casca de pão ou a batata cozida resfriada”, lista.
Participaram do ensaio clínico 200 pacientes, que receberam um plano alimentar planejado por um nutricionista. O amido resistente em pó derivado de milho foi incluído na dieta de metade dos voluntários, enquanto os outros 100 receberam amido de milho não resistente com a mesma quantidade de calorias (grupo controle). Todos os voluntários foram instruídos a beber 20g de amido misturado com 300mL de água antes das refeições, duas vezes ao dia, durante quatro meses.
Após o período, a equipe de cientistas descobriu que os participantes que receberam o tratamento com amido resistente apresentaram níveis de triglicerídeos hepáticos quase 40% mais baixos, em comparação ao grupo controle. Além disso, tiveram reduções nas enzimas hepáticas e nos fatores inflamatórios associados à DHGNA. “Nosso estudo mostra o impacto do amido resistente na melhoria das condições hepáticas dos pacientes e que o benefício é independente das alterações de peso corporal”, enfatiza, em nota, o coautor Yueqiong Ni.
Segundo os autores, pesquisas anteriores sugeriram que a DHGNA está associada à perturbação da microbiota intestinal. O estudo demonstrou essa relação. Ao analisar amostras fecais dos voluntários, a equipe chinesa constatou que aqueles que ingeriram o amido resistente tinham composição e funcionalidade de microbiota diferentes. Apresentavam, por exemplo, níveis mais baixos de Bacteroides stercoris, que, segundo especialistas, está ligada ao metabolismo da gordura no fígado.
Em uma outra etapa da pesquisa, a microbiota fecal de pacientes tratados com amido foi transferida para camundongos alimentados com uma dieta rica em gordura e colesterol. Os animais, então, sofreram redução significativa nos níveis de triglicerídeos hepáticos e melhora na qualidade do tecido hepático. “Conseguimos identificar uma nova intervenção (…) eficaz, acessível e sustentável. Em comparação com exercícios ou tratamentos para perda de peso, adicionar amido resistente a uma dieta normal e balanceada é muito mais fácil para as pessoas seguirem”, afirma Li.
Adriano Moraes, hepatologista do Hospital Santa Lúcia, em Brasília, reforça que esse tipo de suplemento funciona como um prebiótico capaz de regular e reduzir a proliferação de bactérias que podem aumentar a inflamação no intestino em decorrência de alguns alimentos. “Essa onda de inflamação torna o ambiente intestinal favorável à produção de substâncias que, quando caem na corrente sanguínea, podem estimular processos imunológicos, reduzir níveis de bom colesterol, causar estresse oxidativo e liberação de substâncias maléficas”, detalha.
O amido resistente, segundo o médico, reduz a proliferação de bactérias ruins, podendo ajudar a manter o equilíbrio da flora intestinal. Todavia, Moraes observa que, apesar dos resultados obtidos no ensaio clínico, a eficácia da fibra precisa ser melhor estudada. “Esse seria um tratamento adjuvante, que agiria com o controle das síndromes metabólicas, alterações dietéticas e redução de peso. Mas ainda são necessários mais estudos para se ter a certeza de seu valor terapêutico”, pondera.
“Estamos estudando as melhores estratégias de dieta e mudança de estilo de vida, que são a pedra angular de tratamento da gordura no fígado atualmente. Sabemos que a dieta mediterrânea tem efeito positivo no controle da esteatose e que, quando se trata de alimentos que trazemos para as refeições, o mais saudável é usar a dica de ‘descascar mais e desembrulhar menos’. O mundo vive uma pandemia de obesidade com o aumento importante de portadores de esteatose hepática. A gordura no fígado pode ocasionar câncer no órgão sem ao menos passar pelo processo de cirrose. Precisamos encontrar estratégias para minimizar os danos e evitar consequências como fibrose hepática, cirrose e câncer de fígado”
Liliana Mendes, hepatologista da Rede D’Or
Texto de Isabella Almeida para o Correio Braziliense
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