No início deste ano, pesquisadores ficaram surpresos quando a agência reguladora de medicamentos da Austrália, tradicionalmente conservadora, aprovou o uso de psicodélicos para auxiliar em sessões de terapia.
A decisão permite que a psilocibina, encontrada em cogumelos mágicos, seja usada para o tratamento de depressão resistente à medicação.
Também possibilita o uso do MDMA, conhecido como ecstasy quando em forma de comprimido, para tratamento de transtorno de estresse pós-traumático (TEPT).
As mudanças entraram em vigor neste sábado (1/7), tornando a Austrália o primeiro país a classificar os psicodélicos como remédios em nível nacional.
Mas as principais organizações de saúde também pedem cautela.
‘Brilhando de novo’
Marjane Beaugeois foi diagnosticada com depressão severa em 2017. “Em dois meses, perdi minha mãe, avó, meu amado cachorro de estimação e meu relacionamento romântico”, lembra ela.
Ela não podia comer, tomar banho ou sair de casa em Melbourne, na Austrália. E diz que os antidepressivos prescritos a deixavam “como um zumbi, incapaz de chorar, se acalmar ou se sentir melhor”.
“Eu ia para a cama rezando para não acordar”, diz a mulher de 49 anos.
Quando sua busca por terapias alternativas a levou a uma clínica de psilocibina em Amsterdã, na Holanda, ela hesitou.
“Não tenho histórico de uso de drogas ou álcool. Como conselheira para viciados, sempre fui muito contra isso”, diz ela.
Mas ela também estava desesperada para escapar de sua depressão resistente à medicação, então, em 2018, ela se inscreveu.
A psilocibina foi tomada em um chá. “As cores ficaram mais vivas. Eu me senti poderosamente reconectada ao mundo; calorosa e confusa. Fico emocionada só de falar sobre isso… Foi uma experiência enorme e linda de amor incondicional.”
Três sessões depois, ela se sentiu curada. “Eu podia sorrir, sentir alegria, fazer minha rotina diária com clareza”, diz ela. “Quando cheguei em casa, amigos disseram que viram meus olhos brilhando novamente.”
Microdosagem
Quando Glen Boyes sugeriu microdosagem de psicodélicos para tratar sua depressão incapacitante, seu terapeuta foi cético.
“Ele explicou que não era algo que ele fazia, mas que não podia me impedir e faria tomografias cerebrais para acompanhar meu progresso”, diz ele.
O veterano de guerra de 33 anos diz que começou a experimentar “transtorno de estresse pós-traumático persistente” desde seu tempo no exército, durante os lockdowns da covid-19 em Sydney.
Mas após 10 semanas de microdosagem e sessões de terapia, as áreas vermelhas em seus exames cerebrais iniciais mostrando bloqueios desapareceram. “Meu nevoeiro cerebral evaporou. Eu poderia pensar com clareza novamente.”
Como nenhum outro país reclassificou essas substâncias para uso clínico em nível nacional antes da Austrália, o grupo de pessoas que experimentou a terapia psicodélica é pequeno.
O professor David Nutt, chefe de neuro psicofarmacologia do Imperial College do Reino Unido, parabenizou a Austrália por “liderar o mundo nessa inovação vital de tratamento”.
O pesquisador psicodélico e psiquiatra Ben Sessa descreveu a aprovação como pioneira. “É aqui que os holofotes psicodélicos globais agora brilham”, disse ele à BBC.
Sessa pediu demissão de seu emprego na administração da principal organização clínica psicodélica do Reino Unido e passará os próximos 18 meses em viagem à Austrália para ministrar um programa de treinamento sob medida para prescrição de psicodélicos.
Outros países exploraram psicodélicos para uso compassivo (como são chamados programas especiais criados para disponibilizar substâncias experimentais a pacientes), incluindo Suíça, Canadá e Israel.
Nesses países, agências reguladoras tomaram decisões semelhantes à da Austrália, embora não em âmbito nacional. Clínicas psicodélicas também operam legalmente em lugares como Jamaica e Costa Rica.
Mas como a Austrália distribuirá prescrições clínicas para ambos os medicamentos, e a que preço, será observado de perto.
Desenvolvido pela primeira vez como inibidor de apetite em 1912, o ecstasy foi usado em sessões de terapia nos Estados Unidos até meados da década de 1970, quando foi proibido. Ele entrou na Austrália na década de 1980 como uma droga de festa devido aos seus efeitos relatados de aumento de energia, empatia e prazer, e foi criminalizado em 1987.
Nos anos 2000, porém, a pesquisa recomeçou lentamente – com estudos recentes descobrindo que tanto o MDMA, quanto a psilocibina, podem melhorar rapidamente os sintomas de depressão grave, embora pouco se saiba sobre como eles fazem isso.
A Mind Medicine Australia (MMA), uma instituição de caridade que fez lobby por tratamentos psicodélicos, está ajudando a treinar profissionais de saúde encarregados de adquirir e prescrever os medicamentos.
Para se tornar um prescritor autorizado, psiquiatras devem se inscrever em um comitê de ética e no órgão regulador de medicamentos da Austrália, a Therapeutic Goods Administration (TGA). Eles então precisarão obter e fornecer MDMA e psilocibina.
Uma vez contabilizadas todas as despesas – incluindo as próprias drogas, supervisão de equipes multidisciplinares, sessões de psiquiatra e contratação de uma clínica particular – os custos podem chegar 30 mil dólares australianos (cerca de R$ 96 mil) por tratamento, de acordo com um especialista em psicodélicos.
Devido ao preço proibitivo, Stephen Bright, professor sênior da Edith Cowan University, diz duvidar que esses tratamentos “estejam amplamente disponíveis” nos primeiros 12 a 18 meses.
O filantropo Peter Hunt, presidente da MMA, contesta essas estimativas, dizendo que os pacientes devem esperar pagar entre 10 mil dólares australianos (R$ 32 mil) por duas sessões de terapia assistida por psilocibina e 15 mil dólares australianos (R$ 48 mil) por três sessões assistidas por MDMA. “Nós custeamos os tratamentos com uma clínica de saúde mental”, diz ele.
Mas sem subsídios governamentais planejados, espera-se que os tratamentos de cinco dígitos permaneçam inacessíveis para a maioria dos pacientes.
‘Não é uma cura milagrosa’
Os principais órgãos médicos e de saúde mental da Austrália estão entre as vozes mais estridentes contra os tratamentos psicodélicos.
“Há uma cautela considerável da comunidade científica e médica”, diz Kristen Morely, professora de medicina do vício da Universidade de Sydney.
De acordo com a MMA, o “peso de inscrições de milhares de australianos cujos tratamentos atuais de saúde mental simplesmente não estão funcionando” ajudou a obter a aprovação dos órgãos reguladores ao longo do tempo.
Mas a Associação Médica Australiana e o Colegiado Real Australiano e Neozelandês de Psiquiatras (RANZCP, na sigla em inglês) expressaram sérias preocupações.
Ambos os grupos pediram estudos em larga escala e melhores pesquisas sobre tratamentos psicodélicos, alertando sobre riscos desconhecidos, efeitos colaterais de longo prazo e “benefícios potencialmente muito limitados” de seu uso em terapia.
“A terapia assistida por psicodélicos pode oferecer esperança a um pequeno número de pessoas onde outros tratamentos foram tentados sem sucesso. Mas não é uma cura milagrosa”, alerta o professor Richard Harvey, que preside o Grupo Diretor de Terapia Assistida por Psicodélicos do RANZCP.
Ele pede uma abordagem “cautelosa, ponderada e informada”, devido ao “potencial das substâncias psicodélicas causarem medo, pânico e novos traumas”.
“Pessoas vulneráveis podem se sentir compreensivelmente angustiadas se sua experiência não corresponder às expectativas dessa terapia”, diz ele.
Também não está claro, ele argumenta, se os resultados dos tratamentos psicodélicos derivam mais das próprias substâncias ou da psicoterapia.
“Simplificando, a terapia assistida por psicodélicos está em sua infância. Há mais coisas que precisamos saber.”
Matéria de Gary Nunn, da BBC News em Sydney, Austrália
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