Doutor, posso contar com sua prescrição?
Quem atua por mais tempo na indústria farmacêutica já ouviu ou até usou essa frase. Hoje ultrapassada e que abre este artigo quase como uma provocação, no passado é referência a um período em que se adotava uma postura predominantemente persuasiva, buscando um fechamento sobre as necessidades exclusivas da empresa e do produto que se representava.
Quando iniciei no segmento, o propagandista, representante ou consultor como atualmente é chamado, deixava de acumular funções de PVC – propagandista, vendedor e cobrador, para se tornar especialista na geração de demanda ou da efetivação de vendas. Essas mudanças se acentuaram com a chegada dos primeiros produtos biológicos voltados ao tratamento de doenças de alta complexidade, cuja jornada de negócios é impactada com a necessidade de se incluir o pagador institucional e outros stakeholders até então distantes da realidade do setor. Este chamado pagador, que na prática é o gestor da saúde, seja ele público – SUS ou privado – operadoras de saúde, consolida a entrada de um novo e importante player na cadeia de negócios que efetivamente muda a configuração e atuação do profissional da indústria farmacêutica.
Um novo painel de controle, “mais botões para apertar” e mais complexo.
Neste olhar, as estruturas de market access ganham destaque. Inicialmente constituídas com uma visão técnica baseada na farmacoeconomia, hoje se expandem para recortes clínicos, de ATS (avaliação tecnologia em saúde) e comerciais. Surgem posições especializadas como o MSL – Medial Science Liaison para falar “de igual para igual” com os profissionais da saúde e os mais diferentes recortes no negócio como o SAM (strategic account manager) o KAM (key account manager) e outras siglas que aprofundam a especialização na abordagem até chegarmos ao Consultor de Soluções, um profissional que consegue ter uma visão macro de todos os múltiplos stakeholders dentro da jornada do paciente e buscar alternativas de interação e novas formas de abordagem.
O marketing dos produtos necessita de mais empatia para ampliar a agenda às dores dos pacientes e dos diversos players. Amplia-se o mix de comunicação, o digital ganha força e a saúde integrada pressiona para soluções mais ampliadas para além das características e benefícios dos produtos.
Geração da Demanda e Efetivação da Venda: uma jornada bem diferente e em mudança
A prescrição não é mais uma decisão exclusiva do médico, mas de uma estrutura multidisciplinar. Não se baseia mais apenas na experiência clínica do profissional, mas nas evidências cientificas e protocolos, levando em conta as perspectivas e expectativas de quem usa – paciente, quem paga – gestores e quem indica – médicos e profissionais da saúde.
No aspecto operacional, a digitalização de várias etapas da jornada, desde a hipótese diagnóstica recentemente ampliada pela IA-Inteligência Artificial, passando por teleconsultas, prescrições digitais e ações de engajamento e adesão ao tratamento exponencializados pelo ambiente virtual e digital, mudam a jornada e experiências na saúde de forma quase que disruptiva ao que aprendemos até poucos anos atrás. A mídia social ganha peso na pressão dos tratamentos pelo paciente e na forma de conhecimento dos médicos para além do tradicional propagandista.
O novo profissional médico
O censo de 2020 do conselho federal de medicina apontou mudanças importantes no perfil sociodemográfico e de atuação do profissional médico nestes anos 20 do século XXI. Pela primeira vez tivemos o apontamento de mais mulheres médicas do que homens, a profissão está mais feminina, trazendo conceitualmente mais empatia e uma jornada diária com uma dinâmica diferenciada.
A especialização médica está ficando para mais tarde, proporcionando mais generalistas para o mercado, o que poderá impactar nas demandas de especialistas para os tratamentos de média e alta complexidade. E por fim, além de outros pontos muito interessantes da pesquisa, o médico chega acumular hoje, até 6 vínculos empregatícios, o que torna o desafio de acessá-lo muito maior, além dos diferentes perfis e condutas clínicas baseados nas instituições que representa.
E a indústria farmacêutica? Como se preparar?
A indústria farmacêutica é conhecida em todo o mundo pela sua capacidade de inovação e de criar modelos de produção e escala que assegurem o atendimento da demanda com margens elevadas para retornar o investimento das pesquisas e com isso estabelecer uma espiral positiva. No Brasil, as mudanças descritas até aqui pressionam para um novo modelo de negócios e, com isto, uma formação e equipes diferenciadas do padrão adotado nos últimos 30 anos.
As estruturas devem ser matriciais. Os múltiplos contatos requerem competências diversas e para isto faz-se necessário um trabalho em equipe intenso. O olhar da conta chave migra de uma abordagem pontual para construções de projetos em cada cliente. O ciclo de negócios é contínuo e sua construção mais longa, a persuasão está presente, mas a postura consultiva e resolutiva deve prevalecer.
No que tange a construção da oferta, os benefícios do produto devem ser evidenciados não apenas pela parte clínica, mas com uma profundidade no que tange ao economics gerado às partes. Estruturar propostas de valor evoluem para além do negócio core e entram em agendas colaborativas que possam de fato gerar compromissos e valores compartilhados. A venda do produto vira quase uma consequência da relação institucional estabelecida e do engajamento das partes em uma agenda positiva e única. Insere-se a indústria farmacêutica no ambiente B2B efetivamente.
As diversas indústrias se encontram hoje em momentos distintos desta construção. O portfólio e o próprio pipeline interferem diretamente na velocidade desta implantação, mas o fato é que a estrutura de negócios mudou, os médicos mudaram e a simples pergunta quanto a poder contar com o receituário se altera para modelagens mais complexas e de múltiplos stakeholders.
Capacitar as equipes comerciais para desenvolverem um novo modelo mental que estimule a adoção de um pensamento crítico e habilidades de projeto e gestão, torna-se fundamental tanto quanto ter bons produtos, boas ferramentas de trabalho e um mix promocional que transite entre o presencial, o digital e o virtual. Os desafios estão lançados.
*Texto feito por Carlos Pappini Jr, HealthCare Specialist.
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